O Ato Fundador: Análise de A Primeira Missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles


A Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, não é apenas um registro visual do evento de 1500; é um dos documentos ideológicos mais importantes do Romantismo acadêmico brasileiro, que floresceu na segunda metade do século XIX. A grandiosidade de suas dimensões, a técnica apurada e o tema histórico de fundação a colocam como a obra-símbolo do projeto cultural do Segundo Reinado. Concluída em 1861, após Meirelles ter sido enviado à Europa pela Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), a obra reflete o desejo do Império de fundar uma identidade nacional baseada em uma narrativa histórica coesa, grandiosa e, sobretudo, legitimadora da monarquia.

A pintura se afasta da mera crônica dos fatos para se estabelecer como uma cena de fundação, na qual o ato religioso é elevado a um ritual civilizador. Meirelles idealiza o encontro luso-tupiniquim, utilizando o rigor da técnica acadêmica para validar a imposição da cultura europeia e da fé cristã como o ponto de partida inquestionável da nação brasileira. Desde o primeiro olhar, é perceptível que a obra busca harmonizar, de forma artificial, a chegada dos europeus com a presença indígena, suprimindo qualquer indício de conflito.

A maestria técnica de Meirelles é notável e, de fato, é uma ferramenta a serviço de sua intenção ideológica. A composição da tela não é aleatória; ela segue rigorosamente os ensinamentos da pintura histórica neoclássica, uma tradição valorizada pela AIBA. A estrutura é marcadamente piramidal, técnica clássica que confere estabilidade e solenidade à cena. O vértice da pirâmide é formado pela cruz, o altar e o padre, centralizando esses elementos como focos luminosos que simbolizam a luz da civilização, da fé e, por extensão, o destino providencial da colonização.

O contraste lumínico, com claras influências da pintura histórica europeia, especialmente a italiana, é usado para hierarquizar os personagens. Enquanto os portugueses são dispostos no centro, em vestes ricas e atitudes ativas de devoção, os grupos indígenas são relegados a posições periféricas e às sombras. Eles não são os protagonistas do encontro, mas sim espectadores passivos, cujas atitudes variam da curiosidade infantil à perplexidade contemplativa. Sua nudez, tratada de forma idealizada e classicizante, ressalta a ideia do "bom selvagem" que precisa ser guiado.

A paisagem, embora pintada com o exotismo exuberante das terras tropicais, não é apenas um fundo; ela funciona como um cenário grandioso e natural que, através de sua vastidão, parece aguardar a intervenção e a domesticação europeia. O pincel de Meirelles silencia o conflito, a violência e a exploração ligados ao processo inicial de colonização, substituindo-os por uma harmonia forçada e idealizada. Ao fazer isso, o artista transforma a cena histórica de um simples "contato" em um evento de "submissão simbólica" ao poder monárquico e religioso. A obra, assim, torna-se um ato de fundação mitológica do Brasil, onde a colonização é vista como um batismo pacífico e necessário.

O sucesso retumbante de A Primeira Missa no Brasil na época de sua exibição, evidenciado por sua grande premiação (incluindo a Medalha de Ouro na Exposição Geral de 1861), atesta sua eficácia como ferramenta de propaganda imperial e como consolidação definitiva do gênero de pintura histórica no cenário artístico brasileiro. A obra estabeleceu um modelo visual canônico e altamente influente para a representação das origens do país, tornando-se uma referência obrigatória para os artistas acadêmicos da segunda metade do Oitocentos.

Em última análise, a obra de Meirelles é um espelho do seu tempo, um período em que a História da Arte no Brasil, sob o apoio institucional da AIBA e do Imperador D. Pedro II, buscava ativamente construir o Panteão Nacional através de obras que enaltecessem figuras e momentos cruciais. O mecenato imperial impulsionava narrativas visuais que davam forma e legitimidade ao projeto de nação.

Para o olhar contemporâneo, distanciado das aspirações românticas e imperiais, a obra, embora inegavelmente tecnicamente magistral, é lida criticamente como a narrativa oficial do "vencedor." Ela se tornou, nas análises modernas, um objeto de crítica ideológica que revela como a memória oficial da nação foi construída a partir da romantização e da idealização do passado colonial, ignorando as vozes e o sofrimento dos povos originários. 

Ana Luiza De Aquino Aragão


Crédito da imagem

MEIRELLES, Victor (Victor Meirelles de Lima). A Primeira Missa no Brasil. 1861. Óleo sobre tela, 268 x 357 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

Referências

GONZALEZ, Vera. A chegada da Arte no Brasil. Revista do Clube Naval, v. 1, n. 401, p. 42-47, 2022.

PEREIRA, Sonia Gomes. Revisão historiográfica da arte brasileira do século XIX. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, p. 11-28, 2012.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

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