Abigail
de Andrade (1864–1890), uma das poucas pintoras brasileiras do século XIX,
dedicou grande parte de sua produção às pinturas de gênero, retratando cenas do
cotidiano com um olhar intimista e atento às dinâmicas sociais e à vida das
pessoas de sua época.
A
obra A Hora do Pão (1889) demonstra grande vivacidade e transmite ao
espectador uma sensação de imersão profunda na cena retratada. Abigail
apresenta um recorte urbano do Rio de Janeiro do final do século XIX,
capturando um momento cotidiano em um bairro popular. A pintura revela
múltiplos planos de profundidade e é ambientada em um horário matinal, sob uma
luz suave e natural que banha delicadamente os elementos da composição.
No
primeiro plano, centraliza-se a figura de um vendedor de roupas formais, ao
lado de uma pequena mesa coberta por um pano vermelho, onde se dispõem diversos
pães. Ele atende uma criança descalça, vestida com um tom vermelho-escuro, que
carrega nos braços um bebê.
Atrás
da menina, apoiado em uma cerca alta e com uma das mãos na cintura, observa-se
um homem negro, de camisa branca parcialmente aberta, calças azuis e pés
descalços. Seu olhar dirige-se à venda dos pães, sugerindo um instante de
contemplação ou espera. À direita dessa figura ergue-se um muro de pedras
coberto por copas de palmeiras, bananeiras e vinhas, que acrescentam movimento
e textura à cena.
À
esquerda do vendedor, vê-se uma casa de fachada simples. Da janela, uma mulher
se inclina levemente para fora, com um pano vermelho apoiado no parapeito,
estendendo a mão em direção a um menino na rua. A criança, de braços erguidos
como se aguardasse algo — possivelmente uma moeda — veste camisa branca e
calças marrons.
No
segundo plano, logo atrás do vendedor, inicia-se uma ampla escadaria. Na base
dos degraus estão três crianças: a primeira, uma menina negra de vestido
branco, encostada na parede; a segunda, ao centro, loira, vestida com blusa
branca e saia azul, segurando um pano ou saco para guardar os pães; a terceira,
de cabelos castanhos e idade intermediária entre as duas anteriores, trajando
também roupas simples. Subindo a escada, uma menininha loira de vestido branco
corre em direção à mãe, que se encontra no topo, à entrada de uma casa de dois
andares. A mulher, de vestido azul e avental branco, segura um bebê, compondo
uma cena de ternura familiar.
Toda
a arquitetura das construções apresenta paredes originalmente brancas, agora
desgastadas, com áreas onde os tijolos se revelam. Esses detalhes conferem
autenticidade e reforçam o caráter realista da obra, que transforma um simples
momento de compra de pão em um retrato sensível do cotidiano e das relações
sociais da cidade.
A
pintura é um óleo sobre tela de aproximadamente 70 × 50 cm. Abigail utiliza uma
paleta de cores predominantemente terrosa, com ocres e marrons, além de branco
e azul-claro. O uso da luz é cuidadoso, com sombras bem definidas que conduzem
o olhar do espectador e indicam o horário do dia. A composição é calculada,
equilibrando arquitetura, personagens e a ação central da cena.
Considerando
o caráter simbólico e visual da obra, observamos o cotidiano das famílias da
época, as interações entre vizinhos e a infância em sua forma mais pura. No
contexto histórico do final do século XIX, o Brasil vivia transformações
profundas, como o fim da escravidão (1888) e o declínio da monarquia. Inserida
nesse cenário, a artista representa uma sociedade em que brancos e negros
interagem harmoniosamente, sugerindo uma reflexão sobre o pós-escravidão. Ao
mesmo tempo, o ambiente urbano evidencia o contraste entre modernização e
pobreza: muros gastos, janelas quebradas e edificações marcadas pelo tempo
revelam uma cidade em crescimento, mas ainda atravessada pela desigualdade.
Como obra realizada por uma mulher artista em um campo dominado por homens e
por gêneros considerados mais “nobres”, a pintura também carrega um significado
de ruptura e ampliação de fronteiras.
Naquela
época, as mulheres não podiam estudar na Academia Imperial de Belas Artes,
instituição fundada por Dom João VI e reservada exclusivamente a homens. Apenas
em 1893, já rebatizada como Academia Nacional de Belas Artes, a instituição
passou a aceitar mulheres, embora o ensino ainda mantivesse forte viés
doméstico e excludente.
Considerada
“amadora” e destinada apenas ao âmbito doméstico, a mulher era vista como
incapaz de se especializar artisticamente. Mesmo diante de tantos impedimentos,
Abigail conseguiu se destacar. Aos 20 anos, foi premiada na Exposição Geral de
1884. Dos cinco trabalhos apresentados, dois receberam medalha de ouro de 1º
grau: O Cesto de Compras e Um Canto do Meu Ateliê. Foi a primeira
vez que o júri concedeu a mais alta distinção da mostra a uma mulher. Ainda
assim, sua visibilidade permaneceu limitada: muitas de suas obras pertencem a
coleções particulares, o que dificulta o estudo público e uma apreciação mais
ampla, além de a artista ter falecido muito jovem.
Em
suma, A Hora do Pão, de Abigail de Andrade, é muito mais do que uma
simples cena de rua: trata-se de um retrato sensível do Rio de Janeiro do final
do século XIX, das classes populares e das transformações sociais e raciais do
período. Ao mesmo tempo, a pintura evidencia a capacidade técnica e a
sensibilidade crítica de uma artista que, apesar das barreiras impostas às
mulheres, produziu uma obra de grande relevância estética e histórica.
Carolina Kappes de
Morais

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