Laura Palmer, o araçá azul de David Lynch


 

Araçá azul é sonho-segredo, não é segredo. Caetano Veloso conta que em um sonho, viu um fantástico araçá azul, pendurado em um galho alto do açaizeiro, único, no meio dos araçás esverdeados. Eufórico, chamou por Maria Bethânia: “Venha ver uma coisa linda!”. Ela subiu na árvore, balançou-se, simulou uma queda e riu ao ver o irmão assustado. Brincando, Bethânia continuou a balançar e, por deslize, caiu da árvore, Caetano então acordou apavorado. Tempos depois, compôs a música-tema do álbum Araçá Azul, lançado em 1973. Os sonhos, às vezes, inspiram criações artísticas. Em certos casos, a vida em estado de sonho transforma-se na substância de uma peça de arte, como podemos ver no extenso episódio piloto da 1ª temporada de Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost em 1990.

Deus dos sonhos manifestado em Matrix (1999), Morfeu oferece a Neo opções entre a pílula vermelha do despertar e a pílula azul que permitiria seguir sonhando. Sabemos da escolha de Neo pela pílula vermelha, mas caso tivesse optado pela azul, por um arranjo divino, Neo poderia, quem sabe, cair numa armadilha-espiral-onírica e sonhar ser um agente do FBI, dirigindo a 8 kms ao sul da fronteira canadense, rumo a uma misteriosa cidade pequena, para investigar o assassinato da rainha do baile e talvez inspecionar limites entre sonho e realidade. Logo após a ocorrência do crime, o Agente Cooper dirige em direção à pitoresca Twin Peaks, atravessando montanhas majestosas, gravando mensagens à sua interlocutora, Diane, depois de relatar sobre almoços e tortas de cereja consumidos na viagem, ele observa: “nunca vi tantas árvores na minha vida, tenho que descobrir que árvores são essas, realmente incríveis”.  Descobrir e observar são as funções essenciais de Cooper, que nos conduzirá em uma aventura entre a realidade e o sonho de Twin Peaks.

Cercado por pistas e aleatoriedades que envolvem a vida e a morte de Laura Palmer, o Agente Cooper se depara com uma série de enigmas que, por si, compõem um cenário que intriga o expectador, pela familiaridade com que o episódio trata o inusitado: uma letra gravada em um pedaço ínfimo de papel, coletado sob a unha do dedo médio da mão do corpo de Laura e a apreensão de seu diário secreto, que guardava a chave de um cofre e alguma cocaína. Uma gigantesca cabeça de veado repousa sobre a mesa, enquanto, no cofre, encontram-se uma revista pornô com um anúncio grifado e 10.000 dólares em dinheiro vivo. Aqui e ali, surgem totens em diversos ambientes, especialmente em espaços corporativos, de alguma forma associados a Leland, pai de Laura. Durante a assembleia convocada para deliberar sobre o toque de recolher, uma mulher embala nos braços um tronco de árvore enquanto acende e apaga um interruptor de luz. Esse gesto chama imediatamente a atenção de Cooper, pois remete a uma técnica de teste de realidade utilizada por aqueles que buscam despertar para o sonho lúcido, um estado de consciência explorado em práticas xamânicas. Desperto, o neófito realiza atividades comuns da realidade prática, as quais pretende repetir em seus sonhos, com o objetivo de verificar se está realmente sonhando e, assim, adquirir consciência no mundo onírico. Cooper justifica o toque de recolher, afirmando em voz alta: 'Não se esqueçam de que os crimes aconteceram à noite'. Vale lembrar que o reino dos sonhos é o território para onde viajamos todas as noites, regido por suas próprias leis e costumes, sentidos, emoções, habitantes e atmosferas. Além de imagens e acontecimentos simbólicos e enigmáticos, referências diretas aos sonhos são uma constante em Twin Peaks. Donna, melhor amiga de Laura, confessa à mãe que vivia “Um sonho e um pesadelo ao mesmo tempo”, pois ela e James, amante secreto de Laura, descobrem-se apaixonados sob a sombra do crime bárbaro. James relembra a última vez que esteve com Laura: “Foi como um pesadelo, ela parecia uma pessoa diferente”. Sarah Palmer, mãe de Laura, ao ver o espírito que devorou sua filha, grita de puro pavor. Quem nunca acordou de um sonho assustador, ao som dos próprios gritos? Araçá azul fica sendo o nome mais belo do medo. Em Twin Peaks, a vida é o sonho da alma, e a morte sobrenatural de Laura Palmer, o araçá azul de David Lynch.

Sânzio Oliveira


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