Eraserhead, uma obra-prima de David Lynch

Ao longo da história do cinema, alguns realizadores se destacaram por apresentar conteúdos profundamente originais e absurdos em suas obras. Entre eles, David Lynch (1946) figura como um dos cineastas mais fascinantes que a indústria americana já produziu. As obras de Lynch são marcadas pelo nonsense, pelo grotesco e por uma atmosfera estranha. O nonsense é apresentado de forma que se mescla a uma realidade tangível, criando experiências cinematográficas únicas.

O conceito de unheimlich, termo alemão traduzido como “estranho”, pode nos ajudar a entender a obra de David Lynch. Em um ensaio de 1919, Sigmund Freud (1856–1939) descreveu o unheimlich como algo que “torna as coisas incertas; tem a ver com a sensação de que as coisas não são como aparentam por hábito e familiaridade, podendo desafiar toda racionalidade e lógica” (WEISHAAR apud FREUD, p. 5). Essa ideia perpassa o estilo singular de Lynch, consolidado já em seu primeiro longa-metragem, Eraserhead (1977). Classificado como terror/fantasia e traduzido como “Cabeça de Borracha”, o filme reflete o absurdo e a atmosfera desconcertante que caracterizam sua filmografia, conectando-se diretamente ao conceito freudiano do unheimlich.

O projeto de Eraserhead teve início durante o período em que Lynch era aluno na American Film Institute (AFI). Baseado em um roteiro de vinte e uma páginas escrito em poesia de verso livre, o filme possui traços autobiográficos, inspirados nas vivências do diretor naquela época. No entanto, a execução do projeto foi um desafio. Inicialmente, Lynch recebeu uma pequena quantia para sua produção, mas, devido às suas ambições estéticas, os custos ultrapassaram o orçamento original. A discrepância entre a expectativa da banca julgadora da AFI e o resultado final também foi marcante. Por causa do roteiro curto, acreditava-se que o filme teria cerca de vinte minutos de duração. Surpreendentemente, Eraserhead alcançou oitenta e oito minutos, exigindo um esforço de cinco anos para ser concluído, financiado, em parte, por amigos que acreditaram em sua visão. O resultado foi uma obra que, além de inaugurar a carreira de Lynch, se tornou um marco no cinema experimental, explorando a estética do grotesco e do absurdo que o diretor tanto valoriza.

Durante a produção de Eraserhead, David Lynch utilizou os espaços da escola onde estudava como locações. O estábulo, por exemplo, foi adaptado para abrigar o cenário das casas do filme e também serviu como moradia para o diretor. A equipe era extremamente reduzida, o que exigiu que seus integrantes desempenhassem múltiplas funções. Apesar disso, o projeto foi levado muito a sério, pois Lynch o encarava como uma oportunidade única de materializar suas ideias artísticas de maneira inédita. O protagonista, interpretado por Jack Nance, foi escalado em 1971. Para manter a continuidade do personagem, Nance manteve seu icônico penteado durante todos os anos de produção.

Antes de se dedicar ao cinema, Lynch estudou pintura na década de 1960. Foi nesse período que começou a experimentar com curtas-metragens, motivado pelo desejo de “fazer suas pinturas se moverem”. No entanto, nada se comparava à experiência imersiva de Eraserhead, que ele concebeu como um universo imaginado por completo.

Esse universo era sombrio, distorcido e perturbador, um verdadeiro pesadelo onde a paisagem – tanto visual quanto sonora – era dominada pela indústria. Essa atmosfera opressiva tornava a vida um lugar melancólico, misterioso e inquietante, uma sensação amplificada pela fotografia em preto e branco.O filme começa com Henry olhando fixamente para tela. Vemos que ele observa o Homem no Planeta, no prédio ao lado. De repente sai de sua boca um embrião que flutua no ar. O Homem no Planeta puxa uma das alavancas e na sequência vemos o embrião cair em uma superfície com um uma espécie de lago no centro. A imagem corta para uma câmera no fundo de um poço que vai saindo até mesclar com a figura de Henry, que já no começo sustenta uma fisionomia de espanto. 

Os ambientes externos por onde o personagem passa são todos voltados para as construções industriais, as quais a fotografia do filme ressalta a partir das texturas e do aspecto sombrio da arquitetura. A trilha sonora, que também teve os cuidados do diretor, evidencia a atmosfera sufocante que Henry vive por meio do chiado do radiador. Um dia, voltando para casa, Henry conhece sua nova vizinha, uma mulher por quem ele se sente atraído de imediato. No entanto, ela diz que Mary X, a ex-noiva de Henry, havia passado lá, convidando-o para ir a um jantar em sua casa. Henry então vai até a casa de Mary e lá ele recebe uma notícia que mudará completamente a sua vida. Mary acabara de ter um filho de Henry com apenas quatro semanas de gestação. Porém o bebê nasceu deformado, sem pele nem músculos.

A partir daí Henry vê sua vida transformada num inferno. O realismo que Lynch conferiu ao bebê é impressionante e há rumores de que para a sua construção o diretor usou o feto real de um bezerro e o embalsamou em ataduras. O filme é repleto de símbolos interessantes: como a janela do quarto de Henry, que é tampada por um muro que o impede de ver o lado de fora da casa.  Ouvimos barulhos estranhos vindos do radiado que incita a curiosidade e os sonhos de Henry. Em outro momento, há uma cena de sexo onde a cama é transformada em uma banheira cheia de fumaça. A cena do jantar, com um pequeno frango se mexendo no prato e expelindo um líquido preto. Todas essas imagens contribuem para que esse filme de David Lynch seja considerado um dos mais grotescos e estranhos filmes já realizados. Há uma distorção física nos corpos de alguns personagens, mas há também uma distorção em todo ambiente, na atmosfera sufocante e bizarra, que corroboram com essa visão grotesca. Como aponta Matthew Kilgore em Beauty and grotesque:

Entrar no mundo de Eraserhead e Mulholland Drive é chocante, vertiginoso e muitas vezes repugnante. Em uma palavra, é grotesco. Mas o grotesco é a rebelião da humanidade contra o criador, irrompendo em várias formas na sociedade contemporânea como ganância, corrupção, violência, orgulho, vaidade e engano. (KILGORE, Matthew. Beauty and the grotesque (interpreting David Lynch and Flannery O'Connor through the 'light of faith'. Heythrop Journal 51, Mississippi, EUA, p. 5)

O  roteiro fora levemente inspirado na vida do próprio David Lynch, que também acabou sendo pai por acaso no início dos anos 70 e tendo uma filha que nascera com membros deformados. Também é perceptível a influência de Franz Kafka na elaboração do filme, mais especificamente o seu livro A Metamorfose (1915), no qual o protagonista Gregor Samsa se vê transformado em um inseto gigante. Do mesmo modo, Henry vê sua vida transformada depois da paternidade, e ele precisa lidar com uma nova realidade assustadora e bizarra que pode destruí-lo. Existe toda uma atmosfera de estranhamento dentro da realidade cotidiana, como uma espécie de realismo fantástico. E vemos também aproximações estéticas surrealistas do clássico Um Cão Andaluz (1929), de Luis Buñuel. Todos esses elementos contribuem para o mistério com que o filme, por meio da composição das imagens similares a de uma pintura, explora o nonsense e existência absurda dessas figuras. Por isso, vemos uma valorização da expressão dos atores, de modo que cada um deles parece viver em seu mundo próprio.

Podemos dizer que a obra de David Lynch é marcada pelo inquietante e pelo grotesco em todos os seus aspectos, seja na forma visual – como nos ambientes, nos personagens e em suas atitudes – ou no roteiro e na edição. Toda essa inventividade provoca fascínio, mas também repulsa. Isso porque a aparente normalidade da vida é substituída por uma camada grotesca de distorção, em que o absurdo, o desumano, o violento e o horrível dominam a narrativa. Essas características despertam reações intensas no espectador: risos nervosos, expressões de espanto, náusea, e até a necessidade de cobrir o rosto em certos momentos do longa.

Essa reações provocados no espectador, no entanto, são intencionais, já que o diretor não busca o conforto do entretenimento convencional, mas, sim, provocar sensações angustiantes que, de alguma forma, instigam o público a refletir sobre o que está sendo apresentado e as múltiplas possibilidades de interpretação. Trata-se de um filme complexo e ousado, que oferece uma experiência bizarra e grotesca, impossível de ser esquecida.


 

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